Fiscalização e Apuração de Infrações Ambientais: acertos e descompassos da Instrução Normativa Conjunta nº 01/2021 do MMA, Ibama e ICMBio

Publicado em 23/04/2021 10:41 por Victor Ventura

A gestão ambiental federal no Brasil atravessa momentos difíceis, com o país sendo cobrado na esfera internacional por aumentos nos índices de desmatamento na Amazônia e alterações normativas, que, em última análise, podem conduzir ao engessamento da fiscalização ambiental federal e aumento da percepção de impunidade em meio a infratores. Tudo isso às vésperas da realização da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, iniciativa multilateral encabeçada pelo Presidente estadunidense, Joe Biden, como marco do reposicionamento dos EUA na mesa de debates internacionais sobre mudanças climáticas.


O pivô mais recente de críticas ao Governo Federal é a Instrução Normativa conjunta nº 01, de 2021, do Ministério do Meio Ambiente, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes para a Biodiversidade (ICMBio). Essa IN regulamenta o processo administrativo federal para apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, alterando dispositivos da IN conjunta nº 02, de 2020, igualmente aplicável aos três órgãos.


Em essência, a IN 01/2021 manteve intactas importantes passagens da IN 02/2020, que definiram conceitos-chave do Decreto Federal nº 6.514/2008; operacionalizaram o instituto da conciliação ambiental, regulamentada pelo Decreto Federal nº 9.760, de 2019; e disciplinaram o procedimento de autuação, instrução e julgamento de autos de infração ambiental. Contudo, algumas alterações foram recepcionadas com desaprovação por parte de servidores das autarquias federais ambientais e parcela da sociedade civil.


Conforme relatado em reportagem do portal G1, de 20 de abril de 2021, servidores do Ibama denunciavam paralisia da fiscalização ambiental após a publicação da IN 01/2021. Como todo regulamento, a IN não é nem inteiramente acertada, nem inteiramente equivocada, sendo também certo que um juízo de valor dessa natureza estará sempre condicionado a lugares de fala de quem os exprime. De qualquer forma, em meio ao fervor dos acontecimentos, é importante conhecer a nova Norma, detalhar as mudanças mais sensíveis, para então avaliar seus efeitos e alcançar conclusões sobre suas consequências na prática. Iniciemos com os pontos positivos da nova IN.


Aparte mudanças pontuais, como a ligeira alteração no conceito de “absolvição”, ou inclusão do número de IP (internet protocol) no rol de lugares possíveis de infração ambiental, a IN alterou sensivelmente a abordagem dada aos prazos no processo administrativo ambiental federal. Ao passo que a IN conjunta anterior tenha deixado alguns prazos em aberto para a realização de atos administrativos pelo órgão ambiental, a nova norma é mais rigorosa na definição de prazos aplicáveis aos servidores das autarquias federais. É o caso da fixação de prazo de 05 dias para os órgãos analisarem pedido de conciliação ambiental (Art. 67, §1º); prazo de 05 dias para a elaboração do Relatório de Fiscalização, prorrogáveis por mais cinco (Art. 76); prazo de 05 dias para redação de proposta de decisão por parte da Equipe de Instrução (Art. 98); prazo de 30 dias para a autoridade julgadora proferir decisão fundamentada (Art. 99), entre outros.


O rigor com os prazos é imposição decorrente dos princípios da finalidade e da eficiência, contidos no Art. 2º da Lei do Processo Administrativo Federal, Lei nº 9.784, de 1999. Uma atuação fundada em prazos deve, pois, permear o cotidiano da Administração Pública, ainda que esta sofra com subfinanciamento, precarização de seus bens materiais e ausência de contingente de servidores em número adequado à dimensão das demandas. Todos esses são problemas gravíssimos que, infelizmente, afligem o serviço público ambiental no país, via de regra preterido em detrimento de autarquias mais “importantes”, como as fiscais. Porém, o ônus da ausência de condições materiais e humanas nas autarquias não deve ser suportado pelo administrado, que depende de uma prestação célere e eficiente desses serviços, consoante os mandamentos administrativos constitucionais insculpidos no Art. 37 da Constituição Federal.


Ultrapassados os prazos previstos na IN, aos autuados abre-se, ao menos, a possibilidade de se buscar alívio judicial contra eventual arbitrariedade ou abuso, por meio da impetração de mandado de segurança ou outro remédio apto a fazer cessar a lesão. Da mesma forma, a nova IN impactou o processo de imposição de medidas cautelares administrativas ambientais, como embargos e suspensões de atividades, ou apreensão de bens.


O Art. 8º, por exemplo, especifica que a análise de medidas cautelares “caberá à autoridade hierarquicamente superior na unidade técnica do respectivo órgão ambiental competente, com apoio direto e, preferencialmente, do agente autuante”. Nos casos de ausência ou de impedimentos da autoridade hierarquicamente superior, a autoridade julgadora poderá designar a outro servidor a competência para análise e decisão sobre as medidas cautelares, mantido o prazo máximo de 05 dias. Esse dispositivo inovou face à antiga IN, priorizando a análise de medidas cautelares drásticas, como apreensões e embargos, sem desprestigiar a ação do agente autuante que julgou pertinente a aplicação de medida cautelar diante de determinada situação de campo. Ainda no escopo dos acertos da nova IN, tem-se a facilitação da conciliação ambiental, na medida em que, “independentemente de notificação, o autuado poderá solicitar a realização da audiência de conciliação ambiental, a ser efetuada pela via eletrônica” (Art. 9º, PU).


Da mesma forma, a análise preliminar da autuação será reduzida a termo na ata de audiência de conciliação ambiental, em norma que desobstrui, desburocratiza e acelera a conciliação ambiental. Com a nova IN, foi suprimido dispositivo do Art. 31, § 4º, que impossibilitava o embargo de área nos casos de desmatamentos ou queimadas fora de área de preservação permanente ou reserva legal, obrigando a fiscalização, primeiramente, notificar o proprietário de que impedir a regeneração natural da área se caracteriza como ilícito administrativo. Essa obrigatoriedade de notificação prévia, que ajudava a “queimar” imagem da política ambiental brasileira, foi corretamente retirada.


Em geral, com a adoção da IN 01/2021, a performance do agente autuante federal está mais regrada, devendo o fiscal obedecer a requisitos formais que, em última hipótese, garantem transparência e credibilidade ao procedimento de apuração das infrações ambientais. É o caso, por exemplo, da regulamentação a que foi submetido o Relatório de Fiscalização, que passa a contar com requisitos mínimos, inclusive a comprovação de nexo de causalidade entre a situação infracional apurada e a conduta do infrator identificado, comissiva ou omissiva; os critérios e a dosimetria utilizados para a fixação da multa; e a identificação clara e objetiva do dano ambiental, em conformidade com o Art. 14 da IN 01/2021.


Porém, é com o próprio Art. 14 que surgem alguns dos desacertos da nova Norma. Em primeiro lugar, o processo administrativo de apuração de infração somente será instaurado pela autoridade hierarquicamente superior ao agente autuante, após a lavratura do auto de infração. Logo, nota-se que não se limitam os poderes de autuação dos fiscais, mas se condicionam tais poderes à ótica do chefe hierárquico (Art. 14, § 2º). Essa mudança burocratiza a abertura dos processos administrativos, empresta maior controle aos superiores hierárquicos e tende a favorecer deturpações e lesões à finalidade própria do processo administrativo, que é apurar infrações ambientais.


Outra burocratização pode ser encontrada no Art. 18, § 3º, segundo o qual o superior hierárquico máximo da unidade administrativa ambiental federal do local da infração será o responsável pela realização notificação do autuado, a ser realizada em até 05 dias. Ou seja, só quem emite notificações é a autoridade máxima da respectiva unidade administrativa, exigência supérflua, uma formalidade que pode custar eficiência aos órgãos ambientais.


Por último, é temerária também a exclusão de menções a “dano ambiental presumido” no Art. 83, III, medida que pode ser problemática, pois o dano ambiental pode ser evidente, presumido ou inexistente. Seria, por exemplo, o caso de pesca ou caça, em que não se comprova dano efetivo/evidente, mas se presume o dano, com farta jurisprudência nacional confirmando essa hipótese. A mudança vem, portanto, inovar em área pacificada, sem embasamento legal nem técnico para tanto.


Há, ainda, dispositivos com dois gumes, ou seja, que podem cortar de um lado ou do outro. É o caso, por exemplo, do artigo que impõe à autoridade competente o prazo máximo de 05 dias para a tomada de decisão quanto ao pedido de revogação ou cessação da medida cautelar de embargo, determinando que, passado o prazo o processo ficará automaticamente à disposição do superior hierárquico para a tomada de decisão, sucessivamente, no mesmo prazo de 5 (cinco) dias. Normas como essa tanto podem emprestar agilidade à análise processual e favorecer o administrado, que terá seu processo analisado por um superior hierárquico, como pode favorecer interferência política vinda “de cima”.


Como analisado acima, com prazos mais rigorosos, a Administração Pública ambiental vê-se diante de uma escolha da “escolha de Sofia”: reduzir missões de campo, para destinar recursos humanos ao andamento dos processos administrativos, ou manter agentes em campo, descuidando de prazos que, por sua vez, poderão gerar derrotas judiciais às autarquias. Não se trata, pois, a IN 01/2021 de norma exclusivamente benéfica ou maléfica à gestão ambiental federal no Brasil, sabendo que maniqueísmos dessa natureza apenas reduzem e simplificam contextos necessariamente complexos. Porém, é inegável que, apesar dos avanços no tocante aos prazos e à garantia a direitos basilares dos acusados, a nova Norma engessa e burocratiza a fiscalização e a instauração de processos de apuração de infrações ambientais. De qualquer forma, trata-se de ato normativo interno publicado em Diário Oficial, válido e que, portanto, deve ser aplicado, sob pena de invalidação de ações administrativas pela via judicial. Pelo menos, até que decisão judicial suste os efeitos da IN 01/2021, não há que se falar em descumpri-la em benefício da norma anterior, de 2020.


As consequências práticas dessa nova normativa, contudo, têm o condão de trazer maior descrédito da política ambiental do Governo Bolsonaro e maior pressão interna e internacional contra o Ministro Ricardo Salles. Não à toa, amplos setores da sociedade brasileira, a advocacia ambiental inclusive, têm clamado por uma política ambiental responsável e efetiva, e esses fatores devem entrar no cálculo jurídico-político-ambiental do país na atualidade.